Patriarcas e Profetas

CAPÍTULO 64

A Fuga de Davi

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Depois de matar Golias, Saul conservou Davi consigo, e não permitiu que voltasse à casa de seu pai. E aconteceu que "a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como à sua própria alma". Jônatas e Davi fizeram um concerto para serem unidos como irmãos, e o filho do rei "se despojou da capa que trazia sobre si, a deu a Davi, como também os seus vestidos, até a sua espada, e o seu arco, e o seu cinto". A Davi foram confiadas importantes responsabilidades; todavia ele conservou sua modéstia, e ganhou a afeição do povo bem como da casa real.

"Saía Davi aonde quer que Saul o enviava, e conduzia-se com prudência, e Saul o pôs sobre a gente de guerra." I Sam. 18:1, 4 e 5. Davi era prudente e fiel, e era evidente que a bênção de Deus estava com ele. Saul por vezes se compenetrava de sua própria inaptidão para o governo de Israel, e entendia que o reino estaria mais livre de perigo se pudesse haver ligado com ele alguém que recebesse instrução do Senhor. Saul esperava também que sua associação com Davi fosse uma salvaguarda para si mesmo. Visto que Davi era favorecido e defendido pelo Senhor, sua presença poderia ser uma proteção a Saul quando com ele saía a guerrear.

Foi a providência de Deus que ligou Davi a Saul. O cargo de Davi na corte dar-lhe-ia conhecimento dos negócios desta, em seu preparo para a sua futura grandeza. Habilitá-lo-ia a captar a confiança da nação. As vicissitudes e agruras que lhe ocorreram, em virtude da inimizade de Saul levá-lo-iam a sentir sua dependência de Deus, e a depositar nEle toda a sua confiança. E a amizade de Jônatas por Davi era também da providência de Deus, a fim de preservar a vida do futuro governante de Israel. Em todas estas coisas, Deus estava levando a efeito Seus propósitos de graça, tanto em favor de Davi como do povo de Israel.


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Saul, entretanto, não permaneceu muito tempo amigo de Davi. Quando Saul e Davi voltavam da batalha aos filisteus, "as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando, e dançando, com adufes, com alegria, e com instrumentos de música". Um grupo cantava: "Saul feriu os seus milhares", enquanto o outro grupo apanhava o estribilho, e respondia: "Porém Davi os seus dez milhares." O demônio da inveja entrou no coração do rei. Ficou irado porque Davi era mais exaltado que ele no cântico das mulheres de Israel. Em vez de subjugar estes sentimentos de inveja, manifestou a fraqueza de seu caráter, e exclamou: "Dez milhares deram a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta senão só o reino?" I Sam. 18:6-8.

Um grande defeito no caráter de Saul era seu amor à aprovação. Esta característica tivera uma influência preponderante em suas ações e pensamentos; tudo se assinalava pelo seu desejo de louvor e exaltação própria. Sua norma para o que era reto e aquilo que o não era, consistia no baixo padrão do aplauso popular. A pessoa que vive para agradar aos homens, e não procura primeiramente a aprovação de Deus, não está livre de perigo. Era a aspiração de Saul ser o primeiro na estima dos homens; e, quando foi entoado este cântico de louvor, uma firme convicção entrou no espírito do rei, de que Davi ganharia o coração do povo, e reinaria em seu lugar.

Saul abriu o coração ao espírito de inveja de que sua alma estava envenenada. Apesar das lições que havia recebido do profeta Samuel, dando-lhe a instrução de que Deus cumpriria o que quer que Ele desejasse, e que ninguém O poderia impedir, o rei demonstrou que não tinha verdadeiro conhecimento dos planos de Deus. O rei de Israel estava opondo sua vontade à do Ser infinito. Saul não tinha aprendido, enquanto governava o reino de Israel, que devia governar seu próprio espírito. Permitiu que os ímpetos lhe dirigissem o discernimento, até mergulhar-se no furor da paixão. Tinha paroxismos de raiva, ocasiões em que se dispunha a tirar a vida de qualquer que ousasse opor-se à sua vontade. Deste frenesi passava a um estado de desalento e desprezo de si mesmo, e o remorso se apoderava de sua alma.

Gostava de ouvir Davi tocar harpa, e o espírito mau parecia afastar-se como por encanto durante aquele tempo; um dia, porém, quando o jovem estava a servir perante ele, e de seu instrumento arrancava música suave, acompanhando sua voz a cantar os louvores de Deus, subitamente arremessou Saul a lança


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contra o músico com o intuito de dar fim à sua vida. Davi foi preservado pela intervenção de Deus, e ileso fugiu da ira do enfurecido rei.

Aumentando o ódio de Saul contra Davi, tornou-se ele cada vez mais atento para encontrar uma oportunidade a fim de lhe tirar a vida; mas nenhum de seus planos contra o ungido do Senhor foi bem-sucedido. Saul entregou-se ao domínio do espírito mau que o governava, ao passo que Davi confiava nAquele que é poderoso em conselho, e forte para livrar. "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria" (Prov. 9:10) e a oração de Davi era continuamente dirigida a Deus, para que pudesse andar diante dEle de uma maneira perfeita.

Desejando libertar-se da presença de seu rival, o rei "o desviou de si, e o pôs por chefe de mil. ... Porém todo o Israel e Judá amava a Davi". I Sam. 18:13 e 16. O povo bem depressa viu que Davi era pessoa competente, e que os negócios entregues às suas mãos eram dirigidos com sabedoria e perícia. Os conselhos do moço eram de caráter sábio e discreto, e demonstraram a conveniência de segui-los, enquanto o juízo de Saul era por vezes indigno de confiança, e não prudentes as suas decisões.

Posto que Saul estivesse sempre alerta procurando uma oportunidade para destruir a Davi, tinha receio dele, visto ser evidente que o Senhor estava com ele. O caráter irrepreensível de Davi suscitou a ira do rei; ele imaginava que a própria vida e presença de Davi lançavam opróbrio sobre ele, visto que contrastadamente apresentavam com desvantagem o seu caráter. Era a inveja o que infelicitava a Saul, e punha em risco o humilde súdito de seu trono. Que mal indescritível tem feito em nosso mundo este mau traço de caráter! A mesma inimizade que moveu o coração de Caim contra seu irmão Abel, porque as obras de Abel eram justas, e Deus o honrava, e as suas eram más, e o Senhor o não podia abençoar, essa mesma inimizade existiu no coração de Saul. A inveja é filha do orgulho, e, se é alimentada no coração, determinará o ódio, e finalmente a vingança e o assassínio. Satanás mostrou seu próprio caráter, incitando o furor de Saul contra aquele que nunca lhe fizera mal.

O rei mantinha estrita vigilância sobre Davi, esperando encontrar-lhe alguma ocasião de indiscrição ou precipitação que pudesse servir como desculpa para acarretar-lhe a desonra. Entendia que não poderia ficar satisfeito antes que tirasse a vida do moço e ainda assim estivesse justificado perante a nação pelo


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seu mau ato. Pôs uma cilada para os pés de Davi, instando com ele para que dirigisse a guerra contra os filisteus com um vigor ainda maior, e prometendo, como recompensa ao seu valor, casamento com a filha mais velha da casa real. A resposta modesta de Davi a esta proposta foi: "Quem sou eu, e qual é a minha vida e a família de meu pai em Israel, para vir a ser genro do rei?" O rei manifestou sua insinceridade, dando a princesa em casamento a outro.

Uma afeição a Davi por parte de Mical, a filha mais moça de Saul, proporcionou ao rei outra oportunidade para tramar contra seu rival. A mão de Mical foi oferecida ao moço sob condição de ser apresentada a prova de derrota e morticínio de certo número de seus adversários nacionais: "Saul tentava fazer cair a Davi pela mão dos filisteus"; Deus, porém, protegeu o Seu servo. Davi voltou vitorioso da batalha, para tornar-se genro do rei. "Mical, filha de Saul, o amava" (I Sam. 18:18, 25 e 20), e o rei, enraivecido, viu que suas tramas haviam resultado no engrandecimento daquele a quem procurava destruir. Estava ainda mais certo de que este era o homem que o Senhor dissera ser melhor do que ele, e que reinaria no trono de Israel, em seu lugar. Arremessando de si todo o disfarce, expediu uma ordem a Jônatas e aos oficiais da corte para tirarem a vida daquele a quem odiava.

Jônatas revelou a intenção do rei a Davi, e mandou-o que se escondesse, enquanto ele pleitearia com seu pai a fim de poupar a vida do libertador de Israel. Expôs ao rei o que Davi tinha feito para preservar a honra e mesmo a vida da nação, e que terrível crime repousaria sobre o assassino daquele que Deus usara para dispersar seus inimigos. Comoveu-se a consciência do rei, e abrandou-se-lhe o coração. "E jurou Saul: Vive o Senhor, que não morrerá." I Sam. 19:6. Davi foi trazido a Saul, e servia em sua presença, como havia feito anteriormente.

De novo foi declarada a guerra entre os israelitas e os filisteus, e Davi conduziu o exército contra os inimigos. Uma grande vitória foi ganha pelos hebreus, e o povo do reino louvou sua sabedoria e heroísmo. Isto serviu para instigar a anterior animosidade de Saul contra ele. Enquanto o moço tocava perante o rei, enchendo o palácio de suave harmonia, a paixão de Saul


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venceu-o e ele arremessou um dardo contra Davi, julgando pregar o músico na parede; mas o anjo do Senhor desviou a arma mortífera. Davi escapou e fugiu para sua casa. Saul mandou espias para que o prendessem quando saísse pela manhã, e dessem fim à sua vida.

Mical informou Davi do intuito de seu pai. Insistiu com ele para que fugisse para salvar a vida, e desceu-o pela janela, possibilitando-lhe assim escapar. Ele fugiu a Samuel em Ramá, e o profeta, sem temer o desagrado do rei, recebeu com satisfação o fugitivo. O lar de Samuel era um lugar pacífico em contraste com o palácio real. Foi ali, entre as colinas, que o honrado servo do Senhor continuou a sua obra. Um grupo de videntes estava com ele e estudavam minuciosamente a vontade de Deus, escutando com reverência as palavras de instrução que caíam dos lábios de Samuel. Preciosas foram as lições que Davi aprendeu do mestre de Israel. Davi acreditava que as tropas de Saul não receberiam ordem para invadir aquele local sagrado; mas lugar algum parecia sagrado à mente entenebrecida do desesperado rei. A ligação de Davi com Samuel suscitou o ciúme do rei, com o receio de que aquele que era por todo o Israel reverenciado como o profeta de Deus, emprestasse sua influência para a ascensão do rival de Saul. Quando o rei soube onde Davi se achava, enviou oficiais para o trazerem a Gibeá, onde tencionava executar seu intuito assassino.

Os mensageiros partiram, decididos a tirarem a vida a Davi; mas Alguém, que era maior do que Saul, dirigiu-os. Encontraram-se com anjos invisíveis, como se deu com Balaão quando estava a caminho para amaldiçoar Israel. Começaram a proferir dizeres proféticos sobre o que ocorreria no futuro, e proclamavam a glória e majestade de Jeová. Assim Deus governou a ira do homem, em prol de Seus intuitos, e manifestou Seu poder para restringir o mal, enquanto entrincheirou Seu servo com uma guarda de anjos.

A notícia chegou a Saul enquanto avidamente esperava ter Davi em seu poder; mas, em vez de sentir a repreensão de Deus, ficou ainda mais exasperado, e enviou outros mensageiros. Estes também foram superados pelo Espírito de Deus, e uniram-se aos primeiros a profetizar. Terceira embaixada foi enviada pelo rei; mas, quando chegaram aos profetas, a influência divina caiu sobre eles, também, e profetizavam. Saul então resolveu ir ele próprio, pois que sua atroz inimizade se tornara ingovernável.


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Decidiu-se a não esperar outra oportunidade para matar a Davi; logo que ele estivesse ao seu alcance tencionava matá-lo com sua própria mão, quaisquer que fossem as conseqüências.

Mas um anjo de Deus encontrou-o no caminho, e tomou domínio dele. O Espírito de Deus continha-o em Seu poder, e ele prosseguiu a dizer orações a Deus, entremeadas de predições e melodias sagradas. Profetizava a respeito do Messias vindouro, como o Redentor do mundo. Quando chegou à casa do profeta em Ramá, tirou as vestes de cima, que indicavam a sua posição social, e todo o dia e toda a noite manteve-se diante de Samuel e seus discípulos, sob a influência do Espírito divino. O povo juntou-se para ver esta cena estranha, e a experiência do rei foi relatada por toda parte. Assim, de novo, perto do final de seu reino, tornou-se um provérbio em Israel que Saul também estava entre os profetas.

Novamente fracassou o perseguidor em seus intuitos. Afirmou a Davi que estava em paz com ele; mas Davi tinha pouca confiança no arrependimento do rei. Aproveitou esta oportunidade para escapar, receoso de que a disposição de ânimo do rei mudasse, como anteriormente. Seu coração estava ferido dentro de si, e anelava ver mais uma vez seu amigo Jônatas. Cônscio de sua inocência, procurou o filho do rei, e fez um apelo muitíssimo tocante. "Que fiz eu?" perguntou ele; "qual é o meu crime? e qual é o meu pecado diante de teu pai, que procura tirar-me a vida?" Jônatas acreditava que seu pai tinha mudado de propósito, e não mais tencionava tirar a vida de Davi. E lhe disse: "Tal não seja; não morrerás. Eis que meu pai não faz coisa nenhuma grande, nem pequena, sem primeiro me dar parte; por que pois meu pai me encobriria este negócio? não é assim." Jônatas não podia crer que, depois da notável exibição do poder de Deus, seu pai ainda faria mal a Davi, visto que tal ato seria manifesta rebelião contra Deus. Mas Davi não estava convencido. Com grande veemência declarou a Jônatas: "Vive o Senhor, e vive a tua alma, que apenas há um passo entre mim e a morte." I Sam. 20:1 e 2.

Por ocasião da lua nova, celebrava-se uma festividade sagrada em Israel. Esta festa ocorreu no dia seguinte ao da entrevista de Davi e Jônatas. Esperava-se que neste festim ambos os moços comparecessem à mesa do rei; mas Davi receou estar presente, e tomaram-se disposições para que ele fosse visitar seus


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irmãos em Belém. À sua volta devia esconder-se em um campo não longe da sala do banquete, ausentando-se durante três dias da presença do rei; e Jônatas notaria o efeito disto sobre Saul. Se este perguntasse sobre o paradeiro do filho de Jessé, Jônatas devia dizer que ele tinha ido à sua casa a fim de assistir ao sacrifício oferecido pela casa de seu pai. Se nenhuma demonstração de ira fosse dada pelo rei, mas respondesse ele: "Está bem", não haveria então perigo a Davi em voltar à corte. Mas, se ficasse irado com sua ausência, isto resolveria a questão da fuga de Davi.

No primeiro dia da festa o rei não fez pergunta alguma quanto à ausência de Davi; mas, quando seu lugar se achou vago no segundo dia, perguntou: "Por que não veio o filho de Jessé nem ontem nem hoje a comer pão? E respondeu Jônatas a Saul: Davi me pediu encarecidamente que o deixasse ir a Belém, dizendo: Peço-te que me deixes ir, porquanto a nossa linhagem tem um sacrifício na cidade, e meu irmão mesmo me mandou ir; se pois agora tenho achado graça em teus olhos, peço-te que me deixes partir, para que veja meus irmãos. Por isso não veio à mesa do rei." I Sam. 20:7, 27-29. Quando Saul ouviu estas palavras, sua ira foi indomável. Declarou que, enquanto Davi vivesse, Jônatas não poderia subir ao trono de Israel, e exigiu que imediatamente se mandasse buscar a Davi a fim de que fosse morto. Jônatas de novo intercedeu por seu amigo, rogando: "Por que há de ele morrer? Que tem feito?" Este apelo ao rei apenas o tornou mais satânico em seu furor, e a lança que ele destinava a Davi arremessou-a contra seu filho.

O príncipe ficou magoado e indignado, e deixando a presença do rei, não mais foi conviva no festim. Sua alma estava abatida de tristeza, quando, na ocasião aprazada, compareceu ao local em que Davi saberia das intenções do rei em relação a ele. Caíram ao pescoço um do outro, e choraram amarguradamente. A negra paixão do rei lançava sombra à vida dos jovens, e seu pesar era por demais intenso para que se pudesse exprimir. As últimas palavras de Jônatas caíram aos ouvidos de Davi, ao separarem-se eles para seguirem seus caminhos diferentes: "Vai-te em paz. O que nós temos jurado ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja entre mim e ti, e entre a minha semente e a tua semente, seja perpetuamente." I Sam. 20:32 e 42.

O filho do rei voltou a Gibeá, e Davi apressou-se a chegar em Nobe, cidade poucos quilômetros distante, e também pertencente à tribo de Benjamim. O tabernáculo tinha sido levado de Silo


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a este lugar, e ali ministrava Aimeleque, sumo sacerdote. Davi não sabia para onde fugir em busca de refúgio, a não ser para o servo de Deus. O sacerdote olhou para ele com espanto, ao chegar à pressa, e aparentemente só, com o rosto assinalado pela ansiedade e tristeza. Indagou o que o levava ali. O moço estava com receio constante de ser descoberto, e em sua perplexidade recorreu ao engano. Davi disse ao sacerdote que fora enviado pelo rei com uma incumbência secreta, a qual exigia a máxima diligência. Nisto manifestou falta de fé em Deus, e seu pecado resultou em ocasionar a morte do sumo sacerdote. Tivesse declarado plenamente os fatos, e teria Aimeleque sabido o que fazer para lhe preservar a vida. Deus exige que a veracidade distinga Seu povo, mesmo no maior perigo. Davi pediu ao sacerdote cinco pães. Nada havia senão pão consagrado em poder do homem de Deus; mas Davi conseguiu remover seus escrúpulos e obteve os pães para matar a fome.

Um novo perigo apresentava-se agora. Doegue, o principal do pastores de Saul, que professara a fé dos hebreus, estava agora a pagar seus votos no lugar do culto. À vista deste homem, Davi resolveu arranjar à pressa outro lugar de refúgio, e obter alguma arma com que defender-se, caso se tornasse necessária a defesa. Pediu a Aimeleque uma espada, e foi-lhe dito não ter ele nenhuma, a não ser a de Golias, a qual fora guardada como uma relíquia no tabernáculo. Davi respondeu: "Não há outra semelhante; dá-ma." I Sam. 21:9. Sua coragem reviveu quando tomou a espada que uma ocasião usara para destruir o campeão dos filisteus.

Davi fugiu para Aquis, rei de Gate; pois achava que havia mais segurança no meio dos inimigos de seu povo do que nos domínios de Saul. Mas, referiu-se a Aquis que Davi era o homem que matara o campeão filisteu anos antes; e agora aquele que procurara refúgio entre os adversários de Israel, achou-se em grande perigo. Fingindo, porém, loucura, enganou seus inimigos, e assim escapou.

O primeiro erro de Davi foi sua falta de confiança em Deus, em Nobe, e o segundo seu engano diante de Aquis. Davi havia ostentado nobres traços de caráter, e seu valor moral conquistara-lhe favor entre o povo; mas, quando lhe sobreveio a provação, sua


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fé se abalou, e apareceu a fraqueza humana. Via em cada homem um espião e traidor. Em uma difícil emergência Davi olhara a Deus, com os olhos perseverantes da fé, e vencera o gigante filisteu. Acreditava em Deus, e avançou em Seu nome. Mas, ao ser perseguido, a perplexidade e angústia quase lhe esconderam da vista o Pai celestial.

Contudo, esta experiência estava servindo para ensinar sabedoria a Davi; pois levava-o a compenetrar-se de sua fraqueza, e da necessidade de constante dependência de Deus. Oh! quão preciosa é a doce influência do Espírito de Deus vindo ela às almas deprimidas e desesperançadas, encorajando os desfalecidos, fortalecendo os fracos, e comunicando coragem e auxílio aos provados servos do Senhor! Oh! que Deus é nosso Deus, o qual trata mansamente com os que erram, e manifesta Sua paciência e ternura na adversidade e quando somos vencidos por alguma grande tristeza!

Todo o fracasso por parte dos filhos de Deus é devido à sua falta de fé. Quando sombras rodeiam a alma, quando precisamos de luz e guia, devemos olhar para cima; há luz além das trevas. Davi não devia ter perdido a confiança em Deus por um momento sequer. Tinha motivos para confiar nEle: era o ungido do Senhor, e em meio de perigo havia sido protegido pelos anjos de Deus; fora armado de coragem para fazer coisas maravilhosas; e, se tão-somente afastasse seu espírito da situação angustiosa em que se achava colocado, e tivesse a lembrança do poder e majestade de Deus, teria estado em paz mesmo em meio das sombras da morte; podia com confiança ter repetido a promessa do Senhor: "As montanhas se desviarão, e os outeiros tremerão; mas a Minha benignidade não se desviará de ti, e o concerto da Minha paz não mudará." Isa. 54:10.

Entre as montanhas de Judá, procurou Davi refúgio da perseguição de Saul. Escapou para a caverna de Adulão, lugar este que, com uma pequena força, poderia ser mantido contra um grande exército. "E ouviram-no seus irmãos e toda a casa de seu pai, e desceram ali para ele." A família de Davi não podia considerar-se livre de perigo, sabendo que em qualquer ocasião as desarrazoadas suspeitas de Saul poderiam dirigir-se contra eles por causa de sua relação com Davi. Tinham agora sabido - o que aliás estava sendo geralmente conhecido em Israel - que Deus escolhera a Davi para futuro governante de Seu povo; e acreditavam que com ele estariam mais livres de perigos, embora fosse um


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fugitivo numa solitária caverna, do que poderiam estar enquanto expostos à fúria doida de um rei invejoso.

Na caverna de Adulão a família estava unida em simpatia e afeto. O filho de Jessé tangia a harpa e cantava melodiosamente: "Oh! quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!" Sal. 133:1. Ele tinha provado o amargor da desconfiança por parte de seus próprios irmãos; e a harmonia que tomara o lugar da discórdia trouxe alegria ao coração do exilado. Foi ali que Davi compôs o Salmo cinqüenta e sete.

Não demorou muito tempo que ao grupo de Davi se juntassem outras pessoas que desejavam escapar das exações do rei. Havia muitos que tinham perdido a confiança no governante de Israel, pois podiam ver que não mais era ele guiado pelo Espírito do Senhor. "Todo o homem que se achava em aperto, e todo o homem endividado, e todo o homem de espírito desgostoso", recorreu a Davi, "e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens." I Sam. 22:2. Ali tinha Davi um pequeno reino, que lhe era próprio, e neste prevaleciam a ordem e a disciplina. Mas, mesmo em seu retiro nas montanhas, estava longe de se sentir livre de perigo; pois que recebia prova contínua de que o rei não havia abandonado seus propósitos homicidas.

Encontrou um refúgio para seus pais junto ao rei de Moabe, e então, advertido de perigo por um profeta do Senhor, fugiu de seu esconderijo para o bosque de Herete. A experiência por que Davi estava a passar, não era desnecessária ou infrutífera. Deus estava a proporcionar-lhe um curso disciplinar que o habilitaria a tornar-se um sábio general bem como um rei justo e misericordioso. Com seu grupo de fugitivos estava a adquirir preparo para assumir a obra que Saul, por causa de sua paixão assassina e cega indiscrição, estava se tornando inteiramente inapto a fazer. Os homens não podem afastar-se do conselho de Deus e conservarem ainda aquela calma e sabedoria que os habilitarão a agirem com justiça e discrição. Não há loucura tão terrível, tão sem esperanças, como a de seguir a sabedoria humana, sem a guia da sabedoria de Deus.

Saul estivera preparando-se para armar cilada a Davi, e capturá-lo na caverna de Adulão; e, quando foi descoberto que Davi havia deixado aquele lugar de refúgio, o rei ficou grandemente irado. A fuga de Davi era um mistério para Saul. Podia explicá-lo apenas pela crença de que tinha havido traidores no


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seu acampamento, os quais informaram o filho de Jessé quanto à sua aproximação e intuitos.

Afirmou a seus conselheiros que uma conspiração se formara contra ele, e, com o oferecimento de ricos presentes e cargos de honra, subornou-os para que revelassem a pessoa que entre seu povo favorecera a Davi. Doegue, o idumeu, fez-se informante. Movido pela ambição e cobiça, bem como pelo ódio ao sacerdote, que havia reprovado os seus pecados, relatou Doegue a visita de Davi a Aimeleque, apresentando isto sob uma luz tal que acendeu a ira de Saul contra o homem de Deus. As palavras daquela língua perniciosa, postas sobre o fogo do inferno, instigaram as piores paixões no coração de Saul. Enlouquecido de raiva, declarou que a família toda do sacerdote pereceria. E o terrível decreto foi executado. Não somente Aimeleque, mas os membros da casa de seu pai - "oitenta e cinco homens que vestiam o éfode de linho" - foram mortos por ordem do rei, pela mão assassina de Doegue.

"Também a Nobe, cidade destes sacerdotes, passou a fio de espada, desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de mama, e até os bois, jumentos e ovelhas." I Sam. 22:18 e 19. Isto foi o que Saul pôde fazer sob o domínio de Satanás. Quando Deus dissera que a iniqüidade dos amalequitas estava completa, e lhe mandara destruí-los inteiramente, ele se julgou demasiadamente compassivo para executar a sentença divina, e poupou aquilo que estava votado à destruição; mas agora, sem ordem de Deus, sob a guia de Satanás, matou os sacerdotes do Senhor, e acarretou a destruição aos habitantes de Nobe. Tal é a perversidade do coração humano que recusa a guia de Deus.

Esta ação encheu de horror todo o Israel. Fora o rei que eles tinham escolhido que cometera tal afronta; e fizera-o unicamente segundo a maneira dos reis de outras nações que não temiam a Deus. A arca estava com eles; mas os sacerdotes por meio de quem haviam feito indagação foram mortos com a espada. O que aconteceria a seguir?

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